O tempo não absolveu a casa. As paredes se desmancharam em
diferentes tons de amarelo, a velhice assusta os vizinhos... Aliás, a velhice
não, a velhice é bela e plena, o que assusta é a tradição, a imutável qualidade
das coisas naturalizadas. Não são as rugas e as cicatrizes da casa que oprimem
os passantes, é a sua imutabilidade. Não é o corpo flácido da casa que inibe os
olhares alheios, é a paralisia de seus rijos tijolos, é a crônica febre dos
telhados que não se permitem absorver o sol a partir de diferentes ângulos.
Se todos os dias a casa pudesse ir morar em esquinas
diferentes... Se todos os dias pudesse oferecer portas em diferentes paredes,
se todos os dias pudesse ser outra casa, os vizinhos agradeceriam e não se
cansariam de lançar olhares cotidianamente forjados na inocência para
contemplar a transformação do quarteirão, do bairro e, enfim, da cidade.
É a verdade dos fatos: só se observa com grandeza e assombro
as coisinhas cotidianas uma única vez, o resto é pura repetição e costume. É
hábito. A descoberta é uma carta que se lança cegamente ao espaço, é um salto
no escuro, é talvez um grito desesperado para o futuro... Mas no presente, depois que a descoberta
acontece não tem mais volta, ela deixa de ser descoberta e vira qualquer prática
diária sem importância alguma.
Mas aquela casa, em especial... Se o tempo a tivesse
absolvido... Se pelas janelas pudessem surgir minuto a minuto pessoas novas
interessadas em testemunhar o percorrer do tempo pela tarde noite adentro... Os
homens e mulheres da vizinhança todos os dias ficariam em expectativa infantil
para observar qual o novo morador a apresentar-se pelas frestas do lar.
Ficaria a vizinhança absolutamente inquieta para descobrir
que nova e distinta família estaria ocupando salas, quartos e banheiros
invisíveis para aqueles que estão do lado fora.
Diferentes espécies de avós, tios e pais. Crianças nascidas e
renascidas de hora em hora povoando o mundo, fazendo da natalidade um
verdadeiro ato de resistência humana. Naquela casa, caso o tempo a tivesse
absolvido, a política seria o café preto aromatizante de todas as manhãs e o
feijão na panela fervendo para o almoço. E o lirismo seria de uma concretude
formidável... O lirismo existiria nas plantas parasitas - estas que costumamos
aniquilar de nossos belos jardins, estas que se desdobram sol a sol para além de
suas posses de direito roubando de outros vegetais a força vital, sugando a
energia das flores mais adocicadas, das folhas mais douradas de verde... O
lirismo então, direto e duro, seria uma condição de existência: Sobrevivam,
minhas plantinhas! E o façam com alguma poesia!
Eu fui a última a partir. Já faz alguns anos. Cancelei as
engrenagens dos relógios por acreditar que deste modo eu pararia o tempo, pelo
menos o tempo daquele último momento em que olhei para todos os cômodos e me
senti experimentando meu primeiro adeus. Quebrei os ponteiros ao meio para
poder me lembrar daquela descoberta... Naquela época eu já desconfiava que tudo
se dá assim, desse jeito meio efêmero... E-fê-me-ro... Mas só fui aprender essa
palavra muito tempo depois, quando não suportei mais lidar com o inominável das
sensações passageiras.
Também arranquei os tapetes do chão à unha, e deixei vibrando
sob a luz do dia o mar de imundícies que por tanto tempo escondemos sob a
decoração.
As fotografias joguei em uma mala. Os quartos todos tranquei
por fora, à chave de cadeia. Na ousadia da partida fiz a brincadeira de deixar
uma das janelas abertas...
Eis o meu segredo e plano revolucionário...
Se ninguém houver fechado a janela que abandonei escancarada,
quem sabe em um dia de tempestade não surja dentro daqueles cantos uma
verdadeira correnteza de águas suficientemente fortes para derrubar os tons de
amarelo das paredes e, quem sabe, (pelo bem da respiração da madeira fina do
chão e da memória) as próprias paredes?
E então rio: nunca mais casa. A transformação. Mesmo que dure
apenas o tempo de um temporal.