10.31.2012

E ENTÃO RIO



O tempo não absolveu a casa. As paredes se desmancharam em diferentes tons de amarelo, a velhice assusta os vizinhos... Aliás, a velhice não, a velhice é bela e plena, o que assusta é a tradição, a imutável qualidade das coisas naturalizadas. Não são as rugas e as cicatrizes da casa que oprimem os passantes, é a sua imutabilidade. Não é o corpo flácido da casa que inibe os olhares alheios, é a paralisia de seus rijos tijolos, é a crônica febre dos telhados que não se permitem absorver o sol a partir de diferentes ângulos.

Se todos os dias a casa pudesse ir morar em esquinas diferentes... Se todos os dias pudesse oferecer portas em diferentes paredes, se todos os dias pudesse ser outra casa, os vizinhos agradeceriam e não se cansariam de lançar olhares cotidianamente forjados na inocência para contemplar a transformação do quarteirão, do bairro e, enfim, da cidade. 

É a verdade dos fatos: só se observa com grandeza e assombro as coisinhas cotidianas uma única vez, o resto é pura repetição e costume. É hábito. A descoberta é uma carta que se lança cegamente ao espaço, é um salto no escuro, é talvez um grito desesperado para o futuro...  Mas no presente, depois que a descoberta acontece não tem mais volta, ela deixa de ser descoberta e vira qualquer prática diária sem importância alguma.

Mas aquela casa, em especial... Se o tempo a tivesse absolvido... Se pelas janelas pudessem surgir minuto a minuto pessoas novas interessadas em testemunhar o percorrer do tempo pela tarde noite adentro... Os homens e mulheres da vizinhança todos os dias ficariam em expectativa infantil para observar qual o novo morador a apresentar-se pelas frestas do lar.

Ficaria a vizinhança absolutamente inquieta para descobrir que nova e distinta família estaria ocupando salas, quartos e banheiros invisíveis para aqueles que estão do lado fora.

Diferentes espécies de avós, tios e pais. Crianças nascidas e renascidas de hora em hora povoando o mundo, fazendo da natalidade um verdadeiro ato de resistência humana. Naquela casa, caso o tempo a tivesse absolvido, a política seria o café preto aromatizante de todas as manhãs e o feijão na panela fervendo para o almoço. E o lirismo seria de uma concretude formidável... O lirismo existiria nas plantas parasitas - estas que costumamos aniquilar de nossos belos jardins, estas que se desdobram sol a sol para além de suas posses de direito roubando de outros vegetais a força vital, sugando a energia das flores mais adocicadas, das folhas mais douradas de verde... O lirismo então, direto e duro, seria uma condição de existência: Sobrevivam, minhas plantinhas! E o façam com alguma poesia!

Eu fui a última a partir. Já faz alguns anos. Cancelei as engrenagens dos relógios por acreditar que deste modo eu pararia o tempo, pelo menos o tempo daquele último momento em que olhei para todos os cômodos e me senti experimentando meu primeiro adeus. Quebrei os ponteiros ao meio para poder me lembrar daquela descoberta... Naquela época eu já desconfiava que tudo se dá assim, desse jeito meio efêmero... E-fê-me-ro... Mas só fui aprender essa palavra muito tempo depois, quando não suportei mais lidar com o inominável das sensações passageiras.

Também arranquei os tapetes do chão à unha, e deixei vibrando sob a luz do dia o mar de imundícies que por tanto tempo escondemos sob a decoração.
As fotografias joguei em uma mala. Os quartos todos tranquei por fora, à chave de cadeia. Na ousadia da partida fiz a brincadeira de deixar uma das janelas abertas...

Eis o meu segredo e plano revolucionário...

Se ninguém houver fechado a janela que abandonei escancarada, quem sabe em um dia de tempestade não surja dentro daqueles cantos uma verdadeira correnteza de águas suficientemente fortes para derrubar os tons de amarelo das paredes e, quem sabe, (pelo bem da respiração da madeira fina do chão e da memória) as próprias paredes?

E então rio: nunca mais casa. A transformação. Mesmo que dure apenas o tempo de um temporal.


Nenhum comentário:

Postar um comentário