2.18.2012

A Professora Hedda

A senhora Hedda fala ora sílabas estrangeiras, ora sua língua pátria abandonada. Sua impecável postura remete a personagens clássicas do drama, mulheres que exibem todo o poder da elegância tradicional em sua altivez, na imponência confessa. É absolutamente claro como sua sobriedade causa em mim rancores diurnos e satúrnicos, se penso nela – e penso nos momentos mais inférteis de minha apreciação – sinto um pouco de esmorecimento, um desapego ao fôlego que escorre pelas quinas da mesa e atravessa o piso com todo cuidado. (Sou também um pouco vilã, se penso nela, retalho seu sorriso em mil pedacinhos mal mastigados).
O terreno do meu raciocínio não é apropriado para sua delicadeza e seus estudos acerca da neurofisiologia. Eu gosto é do profano e do resto do mundo e da beleza da ironia.

Certa manhã, a senhora Hedda, nossa professora, apareceu, espetacularmente, sem o próprio nariz. Ministrou sua aula com excelência, alongou nossos músculos todos, atingiu nossas vértebras com seu dogmatismo dançante, falou sobre seu último colóquio na França e inspirou profundamente na hora de responder alguma dúvida. Foi uma situação bastante incomum, se peito ficou cheio de ar mas a falta do nariz arrebitadamente perfilado a deixou com uma expressão suprema de sufocamento, a resposta saiu então desta maneira, um tanto afogada, no susto da claustrofobia interna.

Ela permaneceu impávida, quase gélida, gesticulando com as mãos serenamente, duas águas-vivas insípidas e desidratadas, bonitas. Não posso falar mal de seus movimentos ameaçadores, a senhora Hedda estudou, lá longe na Rússia, anos e anos a biomecânica e a arte de imprimir expressividade ao deslocamento corporal, é praticamente uma sereia grandiosa e rainha nas regiões mais abissais de todos os sete mares, uma quimera, monstro marinho. É especialista na feitura do diálogo entre carne e cerebralismos de ocasião.
Não sinto medo da senhora Hedda, não sinto nada; cotidianamente, sua presença na sala de aula me afeta tanto que bem poderia chamar-se ausência.

A certa manhã na qual ela surgiu sem nariz, porém, foi sim especialíssima, seus brinquinhos de pérola reluziam mais do que o breu habitual, o discurso fabricado pareceu menos viciado e mais vicioso. Tentando observá-la de lado, notei que a falta do nariz era maior do que o mecanismo psicofísico das emoções. Eu estava emocionada. A falta do nariz evidenciava enfim o dia ensolarado, o amor maior entre os seres humanos, a crença no progresso social, estímulos vulcânicos que promoverão o renascimento do planeta umbigo. Foram prazer e satisfação envolvidos por imagens românticas e anasaladas. Eu ri pela alma como fazem alguns animais que ainda não patenteamos, sapateei sobre minha felicidade castigando-a por ter se escondido durante tanto tempo naquele par de precipícios que eram as ventas.

Fascinada pelo transtorno bem apessoado de Hedda, eu me entreguei aos exercícios como pródiga boa aluna voltando para o lar. Não. Eu estava mesmo atenta à fisionomia de seu rosto esvaziado; nunca mais o cheiro de bolor, nunca mais a aflição da renite alérgica, nunca mais a poluição da cidadesãopaulo.

O que Hedda fizera na noite anterior fora atitude homérica, e eu nem imagino de que forma corajosa a professora conseguiu atingir a façanha de livrar-se do próprio nariz. Tanto não imagino que amo a transparência da verdade que se apresentou na aula, não há o que questionar. Ando vendo invenções que me absorvem tão intensamente... Como poderia explicar? É quase como sentir o cheiro do café do santo preto às seis da manhã. E eu sinto, não Hedda.

Quando naquela certa manhã, a senhora Hedda amanheceu sem o nariz, eu vivi por ela uma partícula de meiguice.


Setembro de 2008

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